Ter coisas bonitas e ter arte são duas realidades bem diferentes

Aquisição de obras de arte é um exercício de ação cultural. Uma moto bonita não é ação cultural. Uma pintura, uma fotografia um desenho, são exemplos de cultura. Um sofá bonito e um carro novo não são exemplos de cultura. Como disse uma vez Tadeu Chiarelli na exposição dos irmãos Campana no MAM em 2000 "o bom design é arte". Então se sua casa for pobre em arte nas paredes é bom que tenha móveis autorais espalhados pela casa, mas infelizmente não deve ser o seu caso, porque quem não compra arte também não compra móveis autorais. Quero deixar claro que eu pessoalmente adoro motos (e barcos), mas sei que a moto em sí não é cultura. O que pode ser cultura é o que eu faço com a moto, ou como trabalho e elevo o tema de motos. O contexto das coisa é que define o valor delas. Vamos ver neste breve texto como é importante e o que fazer para mudar este cenário de deteriorização da nossa realidade.

Vivemos uma era de enorme crise moral, faltam crenças agregadoras da sociedade, temos apenas crenças individuais, pautadas pelas conveniências do momento e pela ética oportunista e provinciana. O tecido social está como uma colcha de retalhos, com alguns pedaços de seda fina, e outros pedaços de poliéster rasgado. As pessoas ja não estão preocupadas em dar o exemplo, elas só querem dar exemplo de bons modos na mesa da pizzaria. Eventualmente até alí falham.

A autoestima das pessoas no ambiente capitalista é lixo, o sistema é feito "para inglês ver" como dizem em Portugal. Não existe aprofundamento sob nenhuma forma, nem nas rotinas profissionais, nem sequer nos programas de férias. Rejeita-se qualquer desejo de transformação, porque mudar tem custo, e nesta lógica de escassez é mais encorajador economizar recursos e manter uma certa acomodação de espírito, do que investir e se sobressair. Tudo é desvalorizado para ser barateado, tudo é massificado para aumentar os lucros. Tudo o que é bom tem que estar sempre se provando como bom para que não seja descartado em troca de algo ainda pior. Vivemos a cultura do descarte, da substituição de coisas caras por outras coisas caras que a rigor não valem nada.

A casa das pessoas prósperas, ou de classe média, é uma espécie de mini Ilha de Caras, tudo é estritamente decorativo e cenográfico, não existe qualquer visão poética ou crítica, as despesas são feitas para impressionar, ou para um rápido dróps de prazer. Não se pretende manter em casa uma experiência de conteúdos civilizatórios. Impera a tal "cultura da família", mesmo que essa cultura seja decadente. O que mais se ouve é "somos uma família"... só falta continuar a frase "somos uma família caidaça". A palavra família está bem desgastada e banalizada, mas isto é outro assunto.

Como cada um pode fazer a diferença para o resgate da nossa sociedade? Veja que interessante como a expressão "para inglês ver", indica que o inglês é rigoroso, o inglês avalia, o inglês não quer coisa mal feita. Como se nossas coisas fossem pura fachada. E são mesmo. Não precisamos aqui lembrar a cultura artística, literária e tecnológica dos ingleses. Não é a tôa que a pequena ilha de clima inóspito é um dos países mais ricos do mundo. Uma vez conversando com um colecionador português sobre a situação do país luso perguntei "Historicamente Portugal ja foi uma potência mais rica e poderosa do que a Inglaterra, por que a Inglaterra ficou rica e Portugal ficou pobre?". Ele respondeu com a tradicional autocrítica lusitana "porque um inglês vale por dez portugueses". Bem não quero aqui hierarquizar os povos, nem acredito que os ingleses sejam perfeitos, mas temos de reconhecer que seus valores são muito produtivos para os padrões do mundo ocidental. Temos de valorizar e produzir nossa cultura! Simples assim. Desde a cultura local, dos pescadores, das rodas de folclore, e dos pratos típicos, até a cultura mais científica e técnica, como é o caso dos ambientes educacionais e programas de arte. Vá ao teatro. Vá aos museus da sua cidade. Você ja assistiu alguma espetáculo de dança contemporânea? Frequente a sala da orquestra. Frequente vernissages a noite, é até um programa grátis.

Todo comprador de arte é um componente da indústria cultural: não pode haver arte sem um destinatário, sem uma casa que a acolha. Uma casa particular conserva e expõe obras de arte, mesmo que somente para os amigos, é uma iniciativa imprescindível para o funcionamento do sistema de arte contemporânea. Se o voto individual é importante numa eleição de milhões, o envolvimento da pessoa na cultura tem relevância ainda maior. O voto é secreto, é um exercício que não traz reputação pessoal, é um dever. Adquirir arte é uma causa, é um gesto voluntarioso, um atestado de dedicação à cultura, ir além do mínimo, sair da zona de conforto, é demonstrar autoestima, desprendimento e desejo por valores edificantes. Dinheiro não é empecilho, é pretexto para não fazer as coisas. A cultura é o que distingue o ser humano dos animais. Se a cultura é ruim, a casa cai, nem animais seremos. Valorize os conteúdos construtivos da nossa sociedade com sua capacidade de contemplação.

Ricardo Ramalho
1/9/2015